Textos
Texto curatorial por Luísa Kiefer para o projeto Ling apresenta: Gustavo Assarian - Inverno de 2022
Ver o Gustavo Assarian pintando é acompanhar o processo da imagem não apenas se formando, mas tornando-se mais nítida a cada minuto que passa. Um pouco como quando voltamos do oftalmologista com as pupilas dilatadas e com o passar do tempo as imagens vão se redefinindo, recobrando seu brilho e sua nitidez.
Assarian tem método no que ele faz. O trabalho começa muito antes de chegar à parede — ou ao papel, meio geralmente utilizado pelo artista. A autorrepresentação é uma marca da sua poética. Tudo nasce de uma cena ou momento traumático vivido por ele: assalto, abordagem policial, doença, briga, e a lista segue. Momentos que o marcam e precisam ser elaborados. Assim começa um trabalho, pelo processo de reavivamento de memórias, como ele chama. Primeiro ele faz um esboço, em seguida solicita a ajuda de outra pessoa para reencenar o fato e fotografar. A partir das fotografias e de suas lembranças é que nasce a cena a ser desenhada. O local em que o fato ocorreu não vemos. No suporte, ele se faz presente pela subtração, são as zonas em branco que, apesar de nos remeterem a zonas de ausência, de espaço ou de respiro, deixando as figuras soltas no espaço, criam a coerência compositiva.
Na parede do Instituto Ling temos uma cena de violência. As duas figuras das pontas, representadas por autorretratos, colocam o artista nos dois lados do acontecimento, aquele que sofre a violência e aquele que a pratica. Assarian comenta que isso é também uma forma de se colocar no lugar do outro e a partir desse lugar pensar como o outro enxerga a sua imagem. No centro da composição, vemos dois homens-porcos, de terno e gravata, com semblantes tranquilos, até simpáticos. Aliás, à primeira vista, a obra de Assarian talvez capture o espectador pela sua beleza, precisão, habilidade manual e certo humor. É difícil não se impactar pelos claros e escuros, pelos contrastes e noções de profundidade e volume. Portanto, é mesmo aos poucos, conforme o olhar percorre a parede, que é possível perceber outros elementos, como o que o artista nomeia de indicativo de problema — o objeto preto, pontiagudo e longo, empunhado por um dos homens-porco. Pode ser um cassetete, pode ser algo perfurante, pode ser o mastro de uma bandeira. Cada olhar fará a sua leitura conforme perceber os outros símbolos que ali estão.
A potência do seu trabalho emerge desse detalhamento e atenção. “Meu trabalho é uma denúncia”, afirma o artista. Eu digo que são várias, a depender da consciência e disponibilidade de quem estiver diante da parede em encontrar e refletir sobre os seus muitos significados. Não há aqui apenas encantamento técnico, aptidão extrema em retratar figuras de forma hiper-realista. Há muito mais. Há um Brasil que precisa urgentemente refletir sobre suas figuras de poder, sobre seus preconceitos, sobre suas populações marginalizadas e encarar seus traumas para, assim como o artista, elaborá-los e superá-los, mas sem jamais esquecê-los.
Denúncia poética
Artigo por Roger Lerina - 04 de agosto de 2022 - Matinal
O Instituto Ling recebe a partir deste sábado (6/8) o artista visual Gustavo Assarian para uma intervenção ao vivo em uma das paredes do centro cultural. De 6 a 12 de agosto (exceto no domingo), das 10h30 às 20h, o público poderá acompanhar a criação da obra em tempo integral, observando as escolhas, os gestos e os movimentos do artista para desenvolver o trabalho em grandes proporções, que ocupará um espaço com seis metros de largura e quase três de altura. A entrada é franca.
Após o fim da intervenção, Gustavo comentará a experiência e o resultado em bate-papo com o público e a curadora Luísa Kiefer no dia 13, às 11h. A conversa poderá ser acompanhada gratuitamente no Instituto Ling ou no canal do YouTube do centro cultural. Para participar, é necessário fazer a inscrição sem custo no site do Ling.
A parede-obra de Assarian ficará exposta até o dia 15 de outubro, com visitação gratuita. A atividade faz parte do Ling Apresenta, projeto que estreou no último mês de abril e que já recebeu obras dos artistas visuais Bruno Tamboreno e Fernanda Gassen.
Gustavo Assarian faz intervenção artística em parede do Instituto Ling
Artigo por Roger Lerina - 12 de novembro de 2018 - Matinal
Nesta terça (13/11), a Galeria Ecarta, um dos cinco projetos da Fundação Ecarta, promove a itinerância da exposição Os Infortúnios nos São Úteis, de Gustavo Assarian, com curadoria do paulista Gilberto Habib de Oliveira. A mostra terá abertura às 19h, no Espaço Cultural Albano Hartz, em Novo Hamburgo, e visitação gratuita até 26 de janeiro.
A exposição é composta de 15 desenhos recentes e inéditos, produzidos nos últimos três anos, com uso mínimo de cor e espaços em branco. De acordo com o curador, os desenhos de Assarian provocam uma avalanche de associações pelos vínculos figurativos com a história da arte:
– A mimese realista e o preciosismo das linhas são potenciais no trabalho do artista. Entretanto, eles nos instigam a compreender outro elemento: a inserção abstrata de um grafismo negro que transversaliza os personagens do artista como espécie de navalha.
Os Infortúnios nos São Úteis são estruturas de um discurso sintáxico, ou seja, desenho, repetição, uso mínimo de cor e espaços brancos; e semântico com muitos vazios e silêncios, inquietações e estranhamentos.
– Trabalho exclusivamente em cima de situações que considero de crise e como elementos de tensão – explica Assarian.
Simbolicamente, os elementos pontiagudos nas figuras desenhadas por Assarian estão muito próximos das espadas cravadas no coração de Nossa Senhora das Dores, do mestre barroco Aleijadinho, um dos exemplos da arte brasileira. Por outro lado, o inquietante estranhamento da estrutura negra, um tanto fleumática e imperativa, é tão insólito quanto o monólito de Stanley Kubrick no filme 2001 -Uma Odisseia no Espaço.
Gustavo Assarian é graduado há três anos em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui produção artística em desenho, pesquisando as possibilidades do desenho em uma autobiografia. Participa do coletivo de pintura Estúdio P, coordenado pela professora, pesquisadora e artista Marilice Corona.
Em 2017 participou da quarta edição da exposição Novíssima Geração, no Museu do Trabalho, em Porto Alegre. No momento cursa licenciatura em Artes Visuais na UFRGS.
Ter a sex das 9h às 18h
Exposição de Gustavo Assarian em Novo Hamburgo
Texto curatorial de Gilberto Habib de Oliveira para a exposição Os infortúnios nos são úteis - Agosto de 2018
Logo de inicio, os desenhos de Gustavo Assarian nos provocam uma avalanche de associações por seus vinculos figurativos com a história da arte. A mimese realista e o preciosismo das linhas são potenciais em seus trabalhos. Entretanto, eles nos Instigam compreender outro elemento: a inserção abstrata de um grafismo negro que transversa seus personagens como espécie de "navalha. São estruturas de um discurso tanto sintaxico- que é desenho, repetição, uso minimo de cor e espaços brancos quanto semántico, repleto de vazios e silencios, inquietações e estranhamentos.
Como letras de uma "escrita" na sintaxe de um discurso, cada artista visual constrói parasi um signo por meio de figuras, cores, temas, gestos ou maneiras -que alguns chamam de "estilo mas que, na complexidade dos sistemas de significação, trata-se propriamente de linguagem. Culturalmente, todos contribuímos para estabelecer códigos linguisticos por consenso coletivo Na linguagem artistica, porém, cada poeta estabelece para si próprio, de um modo singular, idiossincrático, seu repertório subjetivo e artificioso, a partir de confiitos e questionamentos, dores e conquistas, mistérios e superações, elevando-o a um patamar estético sublimado pelo artificio da representação.
Para além desses indicadores metafóricos, indiretos, que atenuam ou "eufemizam" certas dores, na obra de Gustavo Assarian paira no ar certo mistério, um alerta, uma coisa que mesmo sendo de ordem intelectual não deixa nunca de ser sensível.
Como numa partitura musical, ele é o elemento de pausa, de suspensão, a sinalizar o conteúdo latente de significação. Mais do que na perfeição da forma, eis aquí a evidência de uma linguagem artistica bem articulada, ao transversalizar não apenas a figura, mas também o nosso olhar, Pois o observador, atraído pela precisão do realismo, mergulha na imagem, sel deleita com o desenho, para em seguida ser surpreendido por uma proposta estética que corta a fruição como a "navalha" a que nos referiamos no inicio. Não importa cogitarmos se estes problemas ou infortunias nos pertencem: eles nas são reconheciveis. São equivalentes semánticos dos infortunios e conflitos. traumas ou perturbações que todos vivenciamos, cujas rupturas e reviravoltas nas encaminham superações, cicatrizam feridas e nos fazem amadurecer.
Não nos cabe especulamos quais dramas, enredos ou vicissitudes são necessários que o herói atravesse, nem quais suplicios justificama santificação dos mártires religiosos. A iconografia de Gustavo Assarian é, a seu modo, uma hagiografia silenciosa, feita de cenas autobiografadas nas quais o artista se espelha, ao mesmo tempo em que se artificializa. No mais, deixemos o caminho aberto para pessoas se encantarem e questionarem, reconhecendo em si mesmas o que nelas sejam situações afortunadamente úteis ou, tão somente, inúteis infortunios.
Exposição de Gustavo Assarian na Galeria Ecarta
Artigo acadêmico por Gustavo Assarian - 30 de novembro de 2022
Memória e tempo estão entrelaçados. Quando lembramos de algo, remetemos os acontecimentos/fatos a um período que já passou. Tendo isso em mente comecei a pensar nas relações de tempo que poderia encontrar no meu trabalho. A partir da pintura que produzi no Instituto Ling, mais especificamente no seu apagamento, pude perceber uma série de questões referentes ao tempo: levei cerca de 1 mês para planejar a imagem para pintar, 2 semanas para produzi-la e exatamente 1 hora para apagá-la. Detalhando melhor, usei o meu método de reavivamento de memórias para criar o trabalho, inicialmente. Esse processo é composto por 5 etapas que incluem a reunião de documentos pessoais, esboços, registros em foto, produção da obra e escrita sobre a mesma.
Para apagar o trabalho, segui um roteiro de mais 5 etapas que também pode ser visto como um processo inverso e/ou complementar ao anterior. A primeira etapa caracterizou-se pela feitura de um “esboço de apagamento”, no qual ensaiei o processo em uma cópia impressa da imagem que pintei. Na segunda, fiz o apagamento com tinta branca de uma cópia do meu boletim de ocorrência que trata da situação que serviu de base para o trabalho. Para a terceira etapa iniciei a cobertura com tinta branca do trabalho em si, partindo do “indicativo de problema”. Continuei com a quarta etapa no apagamento iniciando de cima para baixo, velando cada figura independentemente (dos rostos para o resto dos corpos). Por fim, como quinta e última etapa, escrevi um parágrafo simbólico sobre o apagamento.
Por mais que o processo de feitura e desmanche tenha sido feito em um mesmo número de passos, eles se deram em tempos diferentes. Retomar e relembrar a memória me exigiu um período maior de dedicação. O trabalho, posso arriscar dizer, iniciou-se com o acontecimento do fato traumático que o gerou, anos atrás. O esforço que fiz para lidar com a situação me faz pensar nos escritos de Koselleck sobre como as experiências podem afetar nossa percepção e modo de agir:
Tempo de fazer e desfazer
A biografia de qualquer ser humano contém rupturas que parecem abrir um novo período na vida. Alterações bruscas na experiência o forçam a abandonar as trilhas habituais e abrir outras vias. A consciência precisa processar as novas experiências. Quando se transpõem limiares, muito, talvez tudo, se apresenta de modo diferente, dependendo do grau em que somos afetados e tomamos consciência disso. Quando elaboramos nossas experiências, muitas vezes somos levados a alterar comportamentos, pontos de vista e a consciência que temos sobre eles. (KOSELLECK, R. 2000 p. 247)
As diferentes experiências que tive foram moldando a forma como vejo o mundo e penso estar inserido nele. Os traumas que sofri e carrego comigo, permanecem e embora não possa controlá-los, tenho o poder de escolha e decisão de como proceder em relação a eles. Ainda segundo Koselleck:
Tecnicamente, a guerra termina com o cessar-fogo. Com isso, muda o status da consciência desse conflito. A experiência de guerra se transforma em memória. No entanto, a memória não é uma grandeza estável que continua a atuar de forma imutável. Ela está sujeita aos efeitos da guerra, que podem condicionar, recalcar e canalizar a memória, transformando as lembranças que se têm dela. Muitas coisas são esquecidas, outras permanecem fincadas na consciência como um espinho. (KOSELLECK, R. 2000 p. 253)
A guerra produz consequências que agem como um filtro entre as recordações e a consciência.
Quando, então, analisamos seus efeitos sobre a consciência coletiva, precisamos diferenciar entre os efeitos causados pela guerra ainda durante sua ocorrência e os efeitos que devem ser considerados como posteriores. (KOSELLECK, R. 2000 p. 253)
Em determinado momento o autor discorre sobre a guerra. Associando/trocando o termo “guerra” por “experiência traumática”, penso que os fatos que acontecem são inalteráveis. O impacto do trauma serve como um filtro influindo diretamente na memória, destacando alguns elementos, sons, imagens, mais que outros. No meu trabalho eu filtro ainda mais as memórias para o espectador e os “espinhos fincados” aparecem como indicativos de problema. Quando desenho ou pinto, escolho o que julgo ser mais relevante e interessante para mostrar no momento. O tempo passa e as imagens vão sendo alteradas conforme minha percepção sobre elas eventualmente ganha mais outras conotações, sentidos.
Quando elaborei o apagamento da pintura no Ling, fiz sem saber como eu seria impactado pela ação. O intuito era apaziguar a memória, num ato de deixá-la repousar, sem ser esquecida, mas para que eu pudesse dar lugar na minha produção para outras coisas. No entanto, houve um grande imprevisto quando cobri os boletins de ocorrência com tinta branca. As informações que censurei, bem como o resto todo, apareceram em primeiro plano, ficando perfeitamente visíveis, como uma recusa em desaparecerem. Esse fato me fez repensar na ideia de que denúncias não podem e não devem ser apagadas e que não controlamos o que vamos esquecer, e nesse caso apaziguar.
Considerando tudo isso, tive a ideia de propor uma continuação para esse trabalho que não aceita ser domado. Esbocei uma outra imagem (figura 1) que dá continuidade à criada anteriormente. Essa cena representa um outro momento vivido da mesma situação trazida na pintura mural. São duas figuras, ao invés de quatro que apresentam-se como opressora e oprimida. A situação disparadora deste trabalho foi um fato que reuniu uma agressão e uma violência policial. A parede de 6 x 2,8 m que pintei mostrava o momento em que já tinha sofrido um ataque com a recusa de tomada de providências por parte das figuras de poder representadas como porcos. Na imagem mais recente me desenho sentado, em uma posição mais baixa que a figura animalesca que permanece em pé, apontando-me e encarando-me. Era um momento em que aguardava sem saber quais encaminhamentos seriam tomados no palácio da polícia, após a agressão. O esboço aborda o tempo de espera. Retratando um tempo passado no qual eu aguardava ansioso um futuro incerto frente às ameaças sofridas.
Bibliografia
BERARDI, Franco. Depois do Futuro. São Pulo, SP: Ubu Editora, 2019.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro, RJ: Editora PUC Rio, 2000.
Figura 1: Indiscutivelmente II, lápis de cor sobre papel, 29,7 x 42 cm 2022